eu vinha caminhando apressada
cruzei a cidade 49 vezes e o pipoqueiro senhora, senhora, senhora
a senhora esqueceu
meu deus esqueci
esse aperto em meu peito me fez lembrar que morri
muitas vezes na semana passada e agora estou leve
leve
leve
tirem todas essas cestas desnecessárias daqui
já tenho maçãs o bastante para todo esse veneno que adubaram
pela estrada
os carros passavam em grande velocidade
e eu não pude reparar no semblante do cortejo
envolto em fuligem
caos
ergui as duas mãos e me protegi da chuva
ela não era fria
ela estava morna
naquela manhã a chuva estava morta e
enquanto eu deitava na terra lembrei
eu estava morta aos pés do jardineiro
displicente que pisava as cravíneas
era púrpura o meu sangue matizado nas flores
abri a boca bem grande
ninguém me ouvia quando
bruscamente os raios luminosos me cegaram
até o último horizonte disponível em épocas assim
neutro
mas quando minhas asas ressurgiram
eu bem aqui no ponto central da incerteza
o que estou?
Morta – Monólogo fragmento do espetáculo autoral de três atos Kemet, o Mistério.